Cabelos emigrantes
Eu sempre fui um sítio mau para os meus cabelos viverem.
Nos primeiros anos tratei-os sempre com desdém, ignorei-os, raramente os penteei, suei-os até à exaustão e sujeitei-os a alguns puxões, por entre brincadeiras.
Acho que foi aí que começou a sua revolta, e de tão mal tratados resolveram deixar de me obedecer.
Quando lhes comecei a querer dar forma já era tarde demais, já tinham vontade própria.
Comecei então a subjugá-los à minha vontade, com recurso a químicos durante a adolescência, primeiro com toneladas de gel, depois com tufões de laca, de tudo fiz para os moldar coercivamente.
Como perdia muito tempo com isto e não conseguia um resultado minimamente satisfatório, parti para a radicalidade e comecei a cortá-los rente.
Primeiro não os deixava crescer mais do que três centímetros, depois dois, depois um, até que a ameaça do pente zero se tornou uma realidade.
Foi aqui que a vida para os meus cabelos se tornou verdadeiramente insustentável, e terá sido então que decidiram começar a emigrar.
Consciente desta realidade optei por abrir as fronteiras, e evito até usar bonés nos últimos tempos, para que eles possam partir à vontade, sem barreiras, para o início desta aventura em busca de um futuro melhor em novas cabeças.
É notório o abandono massivo da minha população capilar nos últimos anos, e suspeito que já não vá a tempo de criar condições para o seu regresso – não sei sequer se me apetecia -, por isso só lhes posso desejar boa sorte na diáspora e pedir-lhes que vão dando notícias aos que cá ficam, que são cada vez menos e mais envelhecidos.
test Filed under Sem categoria | Tags: Cabelo, Dentro do ninho, Emigração, Humor | Comment (0)
Leave a Reply